12 de fevereiro de 2011

Os eternos vampiros de Anne Rice.

Os vampiros vêm ocupando espaço em nossa mitologia há muito tempo. E é principalmente através da literatura que nosso imaginário continua sendo abastecido com estes personagens, tão incomodamente análogos a nós (ora, não são os vampiros uma metáfora da criatura humana?). Ostentam seu belo semblante, seus bons modos e seu charme – vaidade humana – enquanto sua selvageria mal pode ser ignorada; afinal, pode o nobre humano viver sem sexo, comida e guerra tanto quanto o vampiro pode viver sem sangue?
São muitos e diversos estes seres das trevas. Vão dos monstros que vivem em esgotos sob a cidade até nobres senhores europeus. Mas de todos os vampiros já criados, talvez não seja exagero afirmar que a horda de Anne Rice seja a mais popular. Depois de conde Drácula, existe algum bebedor de sangue tão conhecido quanto Lestat? O fato é que, mesmo aqueles que nunca leram as Crônicas Vampirescas – que narram a jornada de Lestat e seus companheiros –, ao menos conhecem o seu arquétipo, total ou parcialmente adotado por todas as obras sobre vampiros subseqüentes a Anne Rice, inspiradas pelos seus personagens.
O conjunto de volumes que compõe a saga é bastante grande. Inicia-se com “Entrevista com o Vampiro”, publicado em 1976, e segue contando a história de seres românticos, inconformados com a falta de respostas da vida, sempre preocupados com o que está além das necessidades primordiais e do dia-a-dia, como se enxergassem mais do que os olhos podem ver. Detentores de poderes extraordinários, de modo geral sentem-se mais amaldiçoados do que abençoados por estes poderes, revelando a incapacidade humana em lidar com o que não é natural, principalmente no que se refere à imortalidade. Refletem também, um burlesco senso moral, mantido mesmo depois da sua extrema mudança de condição; alguns sentem-se repugnados pelo ato de matar para sobreviver, enquanto outros, contentando-se com o novo estado, mas ainda assim preocupados com a posição que ocupam na ordem moral, expressam este conflito revestindo-se  do papel de “Mal”.
Mas, sem dúvida, nada pode atormentar mais o vampiro do que o dom de permanecer intocável pela passagem do tempo. Contraditório? Pois bem. Embora cresçam em beleza e sabedoria, os vampiros não passam de humanos deslocados de seu tempo. Não conseguem lidar com perdas tanto quanto qualquer mortal, e assim sentem perder sua essência a medida que a época em que viveram (antes que fossem transformados) vai sendo transferida pela próxima, como se o tempo em que o ser vive fosse uma grande parte de quem é. A abstração que sua existência se torna, leva-os, por fim, a uma tão avassaladora solidão, que só existe, então, uma chance de continuar sua jornada: “produzir” para si uma nova companhia, que o faça lembrar, de alguma forma, do seu passado.
Vale destacar, também, o caráter erótico que Rice imprime à estória. Seus vampiros são extremamente sensuais. Nenhum deles é menos do que magnífica, avassaladoramente belo: algo que mescla o charme do classicismo com o magnetismo do predador. Além do que, o êxtase do sangue correndo pelo corpo do vampiro, a caça, a conquista, seriam sensações muito próximas do que são para nós o flerte e o sexo. Torna-se um desafio à imaginação do leitor compreender o fato de que os vampiros não praticam sexo: seus corpos estão mortos e, sem a necessidade de reprodução, as suas paixões, tão mais intensas que a dos mortais, vão além das necessidades físicas. Complementando o conflito, vale lembrar que o corpo do vampiro é alheio à sua alma, do que Cláudia é o maior exemplo. Enfim, embora presos à matéria, entre eles não existem a criança, o adulto, o jovem e o velho, apenas o caráter e os sentimentos.

E é assim que as Crônicas Vampirescas vão transcorrendo. Contando a história destes seres fantásticos que tentam perdurar na eternidade através do amor e da morte.

Nota: Os vampiros de Anne Rice são tipicamente românticos. Mas, entenda-se não o romantismo de novela, dos ledos vampiros de best-sellers. Estes devem ser perdoados por sua superficialidade, uma vez que não pode-se esperar profundidade de um Edward, da mesma forma como não se pode esperar crises filosóficas do Pikachu.


Entrevista Com o Vampiro


Acredito que Entrevista Com o Vampiro trate da luta de um indivíduo contra os próprios instintos. Fala do enorme conflito interno de um personagem que busca a todo custo abdicar de um prazer incomensurável e muito recomendado, e que habita um universo onde é obrigado a praticar aquilo contra o que luta, como condição para sua sobrevivência.
É claro que atualmente não existem mais pecados, pois não existe mais o bem e o mal, nem o certo e o errado. Tudo é uma questão de perspectiva, de princípios que variam de pessoa para pessoa, agora que não há mais uma única verdade absoluta, como antes acreditávamos que houvesse. Mas na Nova Orleans do início do século XIX, os ricos proprietários de terras eram comedidos e preocupados com a conduta cristã, interessados em manter a distinção e o modo de vida que atribuíam aos seus ancestrais europeus. Louis de Pointe Du Lac era um destes homens, o mais velho de uma das muitas famílias de descendência francesa em Nova Orleans. Administrava seus negócios e mantinha uma vida próspera. Contudo, quando seu irmão mais novo veio a falecer, Louis entrou em desespero e desejou a morte, procurando-a em todos os cantos. Foi quando ela surgiu a ele na forma mais inesperada: pele de um branco translúcido, ondulados cabelos loiros e ferozes olhos azuis... Era o vampiro Lestat!
Louis desconhecia os motivos de Lestat para tê-lo transformado, mas, de qualquer forma, os temperamentos diversos dos dois vampiros mantinham-nos em constante conflito; se por um lado Lestat enfurecia-se com a compassividade de seu “filho”, Louis, que detestava sua recém adquirida necessidade de sangue e condenava o ato de matar humanos, espantava-se com os modos cruéis, obscenos e inescrupulosos com que seu criador tratava os outros ao seu redor, o que só fazia aumentar sua repulsa pela existência vampiresca.
Louis e Lestat, por mim

No momento em que Louis resolve enfim abandonar a presença e a influência de Lestat, este transforma em vampiro uma criança de cinco anos de idade. Por amor à criança e por medo de deixá-la à mercê de Lestat, Louis resolve ficar e protegê-la.
Louis, Cláudia e Lestat, por Louzadasama


De fato, Cláudia é o personagem mais peculiar da estória (quem sabe até da História da literatura). Com a aparência de uma criança de cinco anos, a vampira viveu durante quase sete décadas, desenvolveu uma sagacidade tipicamente feminina e uma frieza compatível com a de uma pessoa que, como ela, não teve uma vida humana. Com o passar dos anos, Cláudia desenvolveu sua feminilidade tal qual qualquer mulher; contudo, seu corpo permanecia inalterável. E isto atormentou-a por toda sua vida.
Em determinado momento da estória, Louis e Cláudia destroem Lestat e partem para a Europa, em procura de outros vampiros e de respostas a respeito de sua natureza.

Tal qual seu introspectivo narrador e protagonista, o livro “Entrevista com o Vampiro” é claustrofóbico, repleto de dúvidas e divagações, com poucos personagens, características físicas pouco detalhadas e personalidades pouco compreendidas. De forma geral, apresenta a transição de uma mentalidade arraigada na moralidade cristã para um entendimento mais universal para o comportamento humano: um fator um tanto autobiográfico, uma vez que – diz-se – Anne Rice quase sempre esteve em conflito com suas origens cristãs. Outro traço largamente comentado, que remete à vida pessoal da autora, é o fato de que sua filha faleceu de leucemia aos cinco anos: exatamente a idade em que Cláudia nasceu para a imortalidade. Rice afirma ter escrito e concluído “Entrevista com o Vampiro” na semana seguinte à sua perda.



O Vampiro Lestat

Lestat, por Orestes Sobek
O livro relata toda a longa vida de Lestat até o presente, e revela um personagem um pouco distinto daquele percebido por Louis em "Entrevista Com o Vampiro".
Na época em que aventurou-se em Paris, Lestat viveu no cerne dos acontecimentos de sua época. Nas ruas e nas festas da alta sociedade, experimentou aquele modo de viver onde as pessoas, em sua excentricidade, vestiam-se de forma extravagante, desenvolviam gestos afetados, exploravam sua sensualidade e davam vazão a todo tipo de libertinagem, como se o simples fato de existir fosse motivo para comemoração, e cada noite merecesse embriagar-se em prazer. A paixão do jovem por este savoir-vivre tornou-se tão próprio de si, que seria esta sua característica mais marcante durante toda sua longa vida.
Gabrielle e Lestat, por Amaterasu


Mas, enquanto a nobreza parisiense inventava moda e se distraía em meio à lacinhos, cetim e afagos, um vento de mudança soprava leve pela Europa, trazendo em seu bojo a ameaça de revolução. Naquele momento, enquanto os decadentes senhores feudais sentavam-se em seus castelos mofados, assistindo a morte de suas terras e a sua riqueza evanescente, o trabalho e o dinheiro passavam a serem gerados pelos comerciantes; as únicas coisas que restavam da antiga ostentação dos nobres eram a indolência senhorial e os maus hábitos de lamberem os dedos gordurosos e jogar o resto da comida aos cães.
Assim como o espaço para a inutilidade estava se estreitando, o mesmo ocorria para a ignorância intelectual. Uma onda de racionalismo crescia entre os principais pensadores da época, e suas idéias disseminavam-se pelos camponeses miseráveis que viviam em torno das terras improdutivas de seus senhores. Era chegado o momento do Iluminismo. E o próprio Lestat trazia em si um traço desse racionalismo, através do ateísmo herdado de sua mãe; uma descrença em Deus e na vida após a morte que o fez enxergar a existência humana como uma floresta negra, onde o presente e o prazer de cada um eram as únicas coisas que lhes restavam.
            Lestat, filho e semblante de seu tempo, trazia em si todas as características do século XVIII, palco de eventos que mudariam para sempre o pensamento humano, de forma drástica.
Mal sabia o jovem vampiro que seus passeios pela rua, os lugares que freqüentava e sua sociabilidade eram considerados heresia para uma congregação de vampiros que vivia oculta em Paris, à margem da vida mortal. Criados e educados em meio a duras normas de conduta, estes vampiros eram regidos por uma mentalidade medieval, de que eram condenados do inferno, aos serviços de Satã; assim, viviam reclusos em cemitérios, vestiam-se de trapos, eram imundos e, acima de tudo, nunca travavam contato com um mortal, exceto quando para matá-los, sendo-lhes proibido revelar sua imagem a qualquer um deles. Como Lestat fora abandonado por seu criador no momento em que fora transformado, tendo assistido a seu mestre suicidar-se em meio às chamas de uma fogueira, teve de aprender por si mesmo a lidar com os poderes e limitações de sua nova condição. Não conheceu nenhuma regra e apenas seguiu seus instintos, apoiados em sua vivência mortal.
Quando, então, travou contato com a congregação, tentaram assassiná-lo, acusando-o de heresia por todos os atos que cometera como vampiro fora da lei. Mas, assim como o século XVIII quebrou as velhas e inúteis crenças e hábitos desconexos da antiga mentalidade medieval, Lestat valeu-se de sua personalidade e de seu próprio encanto para remover os dogmas daquele grupo de vampiros, que recusava-se a reconhecer suas potencialidades e seus encantos.
E, assim como o século XVIII sobre os séculos passados, Lestat destruiu a congregação e trouxe seus adeptos para a nova luz dos séculos.

Em outro momento do livro, a origem dos vampiros é enfim revelada. Profundamente enterrada até mesmo para os mais antigos, ela remonta ao antigo Egito e mais além, num mundo há muito esquecido, onde o rei Enkhil e sua rainha Akasha governavam. Tão inacreditável quanto sua história é o fato de os dois seres mais antigos do mundo ainda estarem vivos (tanto quanto um vampiro pode estar) e ainda conscientes, embora sua vida esteja oculta na profundeza de seus rígidos corpos inertes, tal como duas estátuas, sentinelas imemoriais. Mas por que um segredo tão bem guardado foi revelado a Lestat? Quem sabe, esperava-se que a exuberância e a criatividade do vampiro mais imprevisível e ousado do mundo poderiam, de alguma forma, despertar a consciência do Pai e da Mãe de todos os vampiros de volta a vida. 
Mas este episódio traz consigo a imagem do que seria o homem, se vivesse para sempre. Se não houvesse um ponto ao final da frase, seríamos, talvez, como Enkhil e Akasha; em algum ponto de nossa história, não haveriam mais encantos que conseguissem nos impulsionar a acordar e viver, nada a explorar, apenas um desejo apático de permanecer imóvel, como uma rocha, observando o tempo passar, em seu interminável ciclo de repetições.


         Quando Lestat termina suas memórias e retorna a 1984, transcende o mais inesperado grau de ousadia que um ser das trevas jamais alcançou: enquanto experimenta a adorável volta do espírito livre do seu século agora nos anos 80, decide torna-se um rockstar. Assim, o mais celébre personagem de Anne Rice transformou-se, na realidade, o que pleiteara na ficção: ser o mais aclamado vampiro de todos os tempos.


        A Rainha dos Condenados

Os anos 80 são uma verdadeira Era dentro de uma década. Tecnologia, liberdade de pensamento e qualidade de vida são expressão destes tempos, tão adorados por Lestat, tempos tão semelhantes ao rococó parisiense onde iniciara suas aventuras. Um tempo de vampiros. Mas, apesar deste seu encantador clima suburbano, arredio e jovial, que serve de plano de fundo para o desenrolar da estória, não são estes últimos anos que definem o seu cerne. Foi em tempos muito antigos, antes da invenção da escrita, na idade das primeiras civilizações, que tudo começou.
A Rainha dos Condenados trata do Gênese e do Apocalipse dos vampiros. Anne Rice resgata mitos e lendas para criar fatos coerentes para o surgimento dos bebedores de sangue – seriam a grandiosidade e a engenhosidade do Egito antigo, por exemplo, frutos do reinado de reis vampiros? – e, com a mesma objetividade, cria Akasha, um ser milenar de infinita complexidade, que carrega em si não apenas a chave para a existência de todos os vampiros, mas também a síntese do pensamento humano através dos anos.
Ora, Akasha viveu numa época em que as primeiras civilizações começaram a erguer cidades, reunir um povo e desenvolver idéias. Presenciou, de certa forma, o início das ilusões arraigadas que dominam o nosso inconsciente coletivo até hoje. Pois, para ela, a raiz do problema estava justamente nas superstições que os homens adquirem para sustentar suas esperanças e sobreviver à luta e ao abandono em que nascem, superstições que são transformadas em verdades absolutas tão logo passem de geração para geração. Akasha viu religiões crescendo em torno de aparições e revelações de espíritos que, se existem, não podem, de qualquer forma, oferecer solução à vida e à morte humana, porque vivem em outro plano e são indiferentes a nós. E constatou que a fé ajudava o ser a perdurar no tempo, mas que também era responsável pelas atitudes mais iníquas da História. Os sistemas éticos, o moralismo, as hierarquias que provinham da crença nos deuses e no além eram, afinal, apenas combustível para a violência e crueldade que paira sobre os homens desde que surgiram. Então, como a fé no sobrenatural resolveria o mal no mundo? Como faria alcançar os ideais de Paz e Justiça?
Enquanto permaneceu imóvel, talvez por tédio de viver ou por puro conforto, esteve por milênios e mais milênios vagando em espírito pelo planeta, durante os quais valeu-se de seus inacreditáveis poderes para perder-se na mente das pessoas, compartilhando suas dores, seus sofrimentos, suas angústias e experiências. Convicta de que somente ela, no auge de sua força e sabedoria, poderia determinar o nascimento de uma nova Era para a humanidade, Akasha decide finalmente responder ao chamado de Lestat, despertar e dar início à sua visão de um mundo sem fome, guerra e injustiça. Por estratégia, a vampira reveste-se da figura de Deusa dos Céus, para evocar a imagem da Deusa Mãe presente em todas as crenças e culturas dos homens desde o início dos tempos. Akasha pretendia assim, ser o centro de uma nova ordem universal, ocupando uma posição de reverência e adoração, para atrair e resgatar, através de si, a esperança e a motivação do povo, necessárias para a criação do mundo que idealizara. Tentava fazer da fé sua ferramenta de transformação. 
Akasha

E é desta forma que sua filosofia começa a mostrar-se falha, e Akasha é obrigada a encarar os argumentos de Marius, Maharet, Lestat, e dos outros poucos vampiros que poupou. Pois não haveria justiça em transformar a vida das pessoas em nome de um desenvolvimento que a humanidade já estava obtendo por si só. Embora a fome, a miséria e a guerra ainda fossem reais, os últimos séculos trouxeram uma nova luz para os homens, que gradativamente torna-os mais esclarecidos e cientes de suas chagas. Se Akasha levasse a cabo seus planos, estaria, na realidade, apenas derramando sangue e retrocedendo a evolução humana para uma Era supersticiosa, onde as atitudes seriam tomadas em nome de deuses e não em nome da razão, cética e atéia. Nas palavras do próprio Louis, os vampiros abdicaram do direito de interferir na vida humana no momento em que tornaram-se o que são. E Akasha não tornara-se o ser onisciente e onipotente que acreditava ser, mesmo depois de seis mil anos de existência, pois continuava sendo apenas um vampiro, com todas as suas limitações. Continuava sendo um mero retrato do que um dia fora e do tempo em que vivera. E, assim como um dia fora a rainha de Kemet, ela tentava agora, novamente, ser uma figura de transição para seu povo, dar-lhes a dádiva de crer em algo maior, algo que ela sabia não existir, mas que daria esperança às pessoas. Mas o fato é que, numa época em as pessoas precisavam acreditar apenas no seu potencial e no do próximo, não havia mais espaço para uma deusa, ou uma rainha. Não havia mais espaço para Akasha.
Assim, tendo sido derrotada tanto no plano físico quanto intelectual, o último legado da Rainha dos Condenados, antes de sua destruição, fora o expurgo de quase todos os vampiros sobre a terra. Pois, como primeiro passo para alcançar seus objetivos, Akasha erguera-se como uma nuvem negra viajando pelo globo, varrendo quase que completamente da face da Terra todos os vampiros existentes. Pois detestava especialmente aqueles de sua raça, seus próprios “filhos”, que em dado momento da História foram adquirindo a leda convicção de serem “filhos do diabo”, ou uma praga, uma maldição enviada por Deus aos homens, ou qualquer outra coisa do gênero, que justificasse o mal que sua natureza representava para suas vítimas. Para ela, estes seres delinqüentes e irresponsáveis eram incapazes de compreender que o verdadeiro mal do mundo estava além da ordem moral que se empenhavam em infringir; estava, sim, na miséria que os homens trazem para si mesmos, na doença e na morte das quais não poderiam nunca escapar.
Lestat e Akasha
Como desfecho de sua destruição em massa, os poucos sobreviventes imortais decidem formar uma comunidade mais centrada, com novas regras e novas atitudes. Frustrado, Lestat desiste de seu sonho egoísta de tornar a existência dos vampiros uma realidade pública para os humanos. Contando, agora, com os poderes que recebera do próprio sangue de Akasha, ele parte em direção a novas aventuras, tentando esquecer os cataclismos que acabara de viver, e voltando a ser apenas o velho e irresponsável vampiro de sempre.




A História do Ladrão de Corpos


Poucos são aqueles que têm a oportunidade de desvendar os seus mitos e alcançar o ideal mais elevado de sua vida. Para Lestat, acostumado a sempre consumar sua vontade e arcar com as conseqüências dos seus atos, por mais negativas que fossem, a possibilidade da “troca de corpos” significava apenas uma coisa: resgatar um pouco do jovem humano que um dia fora há mais de 200 anos, antes que um monstro como aquele que ele mesmo era agora o arrebatasse do caminho natural de sua mortalidade e o lançasse na Trilha do Diabo. Pouco importava que tivesse de ceder seu poderoso corpo de vampiro para um ladrão mesquinho e vulgar. Ser humano novamente seria readquirir a redenção que todos os vampiros almejam, para viver uma vida sem culpa, sem a necessidade de matar.
Mas a experiência não fora o que Lestat idealizara; voltar a ser humano não era simplesmente dar continuidade àquela vida fabularizada que havia sido deixada para trás, mas sim aprender a lidar com a realidade da fragilidade e de todas as outras limitações humanas, tão aquém do poder dos olhos de vampiro. Então, mesmo depois de reencontrar a divina luz da manhã, e mesmo tendo provado da bondade pura e simples de uma freira missionária, Lestat não resistiu às duras provações de sua recém-adquirida humanidade: o homem desejava mais uma vez o poder do vampiro.

A estória começa numa fase apática da existência de Lestat. Depois de tantos percalços, de uma vida cheia de altos e baixos, o vampiro agora encarava uma rotina de luxos e prazeres efêmeros desconexos, já distantes da arrebatação que sempre buscava. E neste momento, ele passa a questionar-se sobre o sentindo de seus atos e o significado das mortes que impunha aos humanos. O passado vem atormentá-lo na forma de Cláudia que, como um fantasma vingativo, surge em seus sonhos e espreita-o em momentos de pressão, símbolo da culpa que Lestat carregava por todos os atos impulsivos e perversos que acompanhavam sua existência. Por outro lado, a relação de amizade e admiração que nutria por David Talbot, unido à sua recusa em aceitar o Sangue Negro que Lestat constantemente oferecia-lhe, contribuíam para criar no vampiro um sentimento muito próximo da baixo-estima. Ora, então o poder e a existência do vampiro não eram suficientemente sedutores para levar alguém a abdicar de sua humanidade? Se para David, aquele ser admirável, a imortalidade e eterna juventude não valiam o custo de perder a bondade da qual os humanos eram capazes, então realmente, naquele momento, Lestat estava pronto para dar fim à sua existência sem valor.

Se até então acompanhamos a batalha de Lestat contra o mundo, em A História do Ladrão de Corpos o vemos travar uma intensa batalha contra si mesmo, e disto resulta que este é segundo livro mais dramático e intenso das Crônicas Vampirescas. Nos últimos momentos da estória, pode-se ainda ter o prazer de ver um Lestat muito semelhante àquele de Entrevista Com O Vampiro ressurgir, mais cruel e louco, como se, após atravessar a provação dos últimos acontecimentos, e por isso ter-se auto-redimido dos seus pecados, ele estivesse pronto para ressurgir, mais corajoso, mais ousado, removido de toda culpa.



Conclusão...



Mesmo tendo concluído a leitura de quatro volumes, nem de longe alcancei o final das Crônicas Vampirescas. Ainda restam, pelo que me consta, Mennoch o Demônio, O Vampiro Armand, Merrick, Cânticos de Sangue, Fazenda Blackwood, Sangue e Ouro, Pandora e Lasher. Contudo, não pretendo acompanhá-la a partir daqui, pelo menos não agora. Quem sabe num futuro próximo, quando eu houver cumprido minha imensa lista de leituras prioritárias, que se alonga cada vez mais; quem sabe, quando eu sentir uma grande falta destes personagens sensuais, confusos, intrigantes e magníficos, e de suas histórias voluptuosas e negras; daí, quem sabe, eu retome e conclua essas Crônicas Vampirescas.
Então, para encerrar por agora, segue uma classificação mais... “estatística”?... das minhas impressões sobre os livros.

Pontos Negativos:
  • A beleza física perfeita dos personagens: mesmo sendo essencial em todo o percurso da estória, essa característica inerente aos vampiros de Anne Rice irrita, cedo ou tarde. Pessoalmente, quase me levou a desistir da saga antes mesmo de iniciá-la, e quase não suportei a atração/admiração excessiva de Louis por Lestat no momento em que fora transformado. Como sabemos que nada no mundo é perfeito, esse tipo de coisa faz a ficção parecer enganadora. Gostamos quando as coisas não são esfericamente perfeitas, como acontece na realidade.
  • Super-poderes: é claro que vampiros têm super-poderes. É outra característica inerente à definição, mas é um aspecto que tem de ser bem trabalhado, comedido e nunca – nunca! – pode ser o centro da narrativa. É claro que Anne Rice foi equilibrada como ninguém nesse sentido, mas ainda assim houveram passagens em que pareceu não tratar-se mais de vampiros, mas de X-Men ou Dragon Ball.
  • Sexualidade Excessiva: é claro que vampiros não fazem sexo, mas a sexualidade aqui é alegórica. A relação do vampiro com o desejo de Sangue e Morte reflete sensações e emoções nossas que merecem ser expostas. Mas não são o que há de mais rico para ser analisado na existência do vampiro.
  • Armand: inconstante, neutro, vazio, indiferente. Até agora não consigo fazer um quadro mental coerente de como ele seria, pois sua aparência oscila tanto que permanece uma incógnita, tal qual seus pensamentos, emoções, idéias, anseios e objetivos. Ou Anne Rice foi muito eficaz em criar a imagem da passividade, ou realmente criou um personagem superficial, ao qual é atribuída uma profundidade falsa. Além do mais, perdoem a inflexão moral implícita a seguir, mas é nojento o modo como ele tenta coagir Louis, Lestat, Gabrielle e Daniel a viver ao seu lado. O vampiro-parasita.
  • O retrocesso de Lestat: pobre Lestat. Tão ambíguo em seu encanto. Nosso querido anti-herói e protagonista era perfeito em sua imperfeição na Entrevista com o Vampiro de Louis, e conservava seu encanto em vários outros momentos da saga, mesmo tendo sido modificado (ou revelado?) o seu verdadeiro caráter. Contudo, a meu ver, Lestat foi-se tornando progressivamente mais infantil, cínico, banal e melodramático.
  • Religiosidade pervertida: a religião foi importante para os livros, não só pela estética que empresta ao mundo dos vampiros, mas também por expor o conflito dos personagens, que, vivendo em sombria existência à margem da luz de Deus, mais cedo ou mais tarde perdem a fé na promessa divina e caem na realidade de suas vidas materialistas e devassas. De acordo com o que li em A História do Ladrão de Corpos e em alguns spoillers, parece que Anne Rice cai na tentação de dar um caráter mais científico à existência de Deus. Para mim, até onde as coisas servem como metáfora, tudo bem. Mas daí a extrapolar na licença poética, para dar voz a algumas teorias ousadas... Bem, isto só serve em Dan Brown.

Pontos Positivos
  • Louis. Em todos os seus aspectos.
  • Lestat: único no gênero, com sua graciosa malícia, irresponsabilidade, irreverência e beleza, como só um francês daquele inacreditável séc. XVIII poderia ser. Um verdadeiro felino com membros humanos. Em Entrevista com o Vampiro, acredito eu, esteve em sua melhor face, embora quase todos os leitores o amem mais como o personagem de “O Vampiro Lestat”. No primeiro, era retratado como violento, cruel, dominador e ignorante, embora seu brilho pessoal já houvesse sido revelado; a partir do segundo, foi-se tornando infantil, mais encrenqueiro do que propriamente valente – traços que podem parecer apreciáveis num herói de livro, mas que, numa pessoa de verdade, torna impossível a convivência, como podem confirmar aqueles que já provaram isto na pele, como eu.
  • O Tempo e a Imortalidade: este é o tema mais importante e bem trabalhado da saga. A forma como a alma humana reagiria perante a vitória sobre seu maior inimigo – A Morte – e diante da passagem dos séculos. De forma geral, esse aprisionamento ao material não se mostra muito vantajoso.
  • Cenários: complementando o item anterior, é admirável como Anne Rice consegue resgatar o passado. Não só os fatos históricos, mas o espírito de cada época, as características das pessoas em determinado período da História, as roupas, os objetos, a arquitetura e a sua relevância para a formação/expressão da personalidade do indivíduo. Ou ela é realmente genial, ou nos ilude muito bem.
  • Anos 80/90: este item é bem pessoal. Eu amo as coisas que se referem a estas décadas. Um amigo certa vez disse que todos nós nos sentimos mais intrigados pela época em que éramos crianças porque é cercada pelos mistérios da juventude e formação de nossos pais, e também porque foi a geração que, de certa forma, semeou o modo como vivemos e pensamos hoje. Para mim, os anos 80 e 90 são anos de rebeldia, de escuridão suburbana, onde os jovens delinqüentes e irresponsáveis se esgueiravam pelas sarjetas para extravasar sua liberdade. Anos de jeans justos, tênis All Star, punks, X-men, Mortal Kombat e Street Fighter. E as Crônicas Vampirescas não só se ambientam nessa época, como também a adaptação cinematográfica Entrevista com o Vampiro foi produzida em tais.

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