16 de fevereiro de 2012

Um conto d'O Gato

Johanes era um rapaz magro e alto, com braços e pernas e mãos e pés longos e largos, que esbarravam em tudo e em todos. Era extremamente desajeitado. Passava pelos lugares esbarrando em móveis e pessoas, derrubando objetos e batendo a cabeça. Mas isso não era inteiramente culpa sua - membros maiores são mais difíceis de administrar.
E, embora fosse dono de uma natureza plácida, passava pela vida do mesmo modo que andava pelo mundo: aos tropeços, quebrando e machucando (a si mesmo), como um furacão ensandecido incapaz de controlar-se e sem saber para onde seguir.
Mas são assim os sentimentos; você precisa pôr-lhes arreios e domá-los para que, mesmo não podendo eliminá-los, eles não o dominem.
Infelizmente, ninguém ensinou-lhe a pôr arreios e domar cavalos, muito menos sentimentos, e é por isso que por esta vida o rapaz seguia, engolfado por uma tempestade em alto mar de emoções.
Naquela noite de inverno, Johanes, ou melhor, Dio - como era mais chamado -, estava sentado em sua cama, com o rosto enfiado num travesseiro, preso num labirinto de reflexões, enquanto ouvia o barulho da chuva caindo lá fora.
- Um dia eu não vou suportar mais tudo isso - murmurou - e vou acabar dando um fim nesta vida.
Evidentemente, ele estava aflito e costumeiramente o motivo por essa aflição era banal. Comumente punha a culpa em si mesmo por seja lá o que o fez ficar aflito e tipicamente resolvia o caso pondo a solução no suicídio; um requisitado suicídio que estava agora tão longe de ser concretizado quanto sempre esteve. Felizmente ou não, Dio não era ainda o tipo de pessoa que poria fim à própria vida.
Ali, no meio de seu quarto pequeno, todo decorado de azul escuro, como no fundo do mar ou numa noite escura - ambos lugares onde um tímido se sentiria protegido -, ele começava a tentar entender o que houvera feito de errado para sentir-se triste agora.

Naquela mesma tarde, ele havia saído de casa para visitar seu mais frequente amigo, John Soberbo. Um nome extravagante, mas não tanto quanto seu dono, de tal forma que chamavam-no pelo último nome como se não houvesse nenhum outro pelo qual chamar, tamanha a identidade que um conferia ao outro. Tratava-se de um sujeito asqueroso, metido com todo mundo e envolvido em todo tipo de negócios, sempre buscando uma forma de ser notado. Assim, aplicava todas as energias de suas 19 horas de vigília diária tocando guitarra, apresentando pequenos shows pela cidade, fazendo cinco cursos durante a semana – graduações, técnicos, profissionalizantes, curiosidades e mexericos -, além de praticar exercícios diariamente numa academia da cidade.
Era um rapaz baixo (o que contrastava com seu ego superdesenvolvido) mas forte. Cabelos muito escuros e sobrancelhas grossas e unidas, um sinal de pessoa irritável e sem sossego, como alguns estudiosos poderiam confirmar. Era um pouco mais velho que Dio, que tinha por volta de 20 anos.
            Durante a visita, os dois jogaram cartas, jogos de tabuleiro, assistiram TV e muitas coisas que se fazem em finais de semana chuvosos como aquele. Também conversaram sobre todo tipo de coisas sem importância, como notícias de vacas clonadas que passavam ocasionalmente na TV.
            A verdade é que apenas Soberbo conversava, enquanto Dio só escutava. Normalmente era assim. O primeiro podia passar horas a fio falando e falando e tentando fazer-se rir, enquanto o segundo ficava quieto, fingindo expressões de espanto ou risos esporadicamente.
            Ora, por que Soberbo gostava de Dio? Bem, não gostava. Mas Dio era muito inteligente, é preciso dizer, e Soberbo gostava de colecionar amigos assim, que se destacassem da maioria de alguma forma, seja pela virtude ou pela falta dela. E os exibia como se fossem contas de um colar.
            Ora, e por que Dio gostava de Soberbo? Bem, também não gostava, esta que é a verdade. Mas Dio era dono de uma mente aguda, capaz de bolar estratégias estupendas, como esta, de fingir ser amigo de alguém tão extravagante que pudesse desviar a atenção dos outros só para si. Assim, Dio poderia confundir-se facilmente com a mobília quando da presença do outro, e então ninguém o perceberia.
            As pessoas tímidas costumam mesmo despender muita energia em métodos e estratégias para se verem livres de atenção alheia. Sentem-se tão ridículas e desengonçadas que detestam quando alguém lhes dirige um olhar ou puxam um papo, como se estivessem pensando em sua mediocridade por trás das palavras.
            Além do mais, não tendo muitos amigos, o único que poderia distraí-lo em dias como aquele era Soberbo.
            Então, ali estavam. Dio com uma sequência de copas na mão, enquanto seu “amigo” estava do outro lado da mesa, com as mãos mais cheias de cartas do que um carteiro, vesgueando os olhos por elas, tentando entender o que significavam.
            - Lembra aquela Cristine que fazia aula de Direito conosco? – dizia o bobalhão de mãos cheias – Ela não para de me ligar. Está louca pra ter outra chave comigo. Esse tipo me cansa.
            - Uhum – Dio balançou a cabeça em concordância – Você não esqueceu que é sua vez de jogar, né?
            - Não, não. Eu já vou.
            Algum tempo depois, naquela única partida, Dio alcançou a pontuação limite e ganhou o jogo. Deram-se as cartas novamente e começaram um novo jogo. Soberbo continuou falando.
            - Sabe uma loirinha que mora aqui do lado?
            - Sei.
            - Ela namora.
            - Sei.
            - Mas tá caidinha por mim.
            - Nossa...
            - Imagina só, ontem ela veio até mim quando eu passava pelo portão de casa e você não acreditaria na conversa que me passou.
            - Nem posso imaginar. Sua vez de jogar.
            - Primeiro ela veio com um papo de...
            Nesse momento, alguém entrou pela porta. Era o irmão caçula de Soberbo, um verdadeiro Frankstein; mais alto que Dio, mais forte que o irmão mais velho, mas com um rosto de criança, como se corpo e cabeça não houvessem nascido juntos e sim posteriormente unidos.
- Oi – disse ele.
Seu nome era Caio. Era tão bobo quanto o irmão, mas não tão arrogante. Trazia a namoradinha aninhada entre o braço e a axila esquerda. A coitada nem falava.
- Podemos jogar também?
- Claro! – disse Dio. O importante era que o tempo passasse, pensava ele.
Enquanto jogavam, Soberbo continuava contando suas desventuras amorosas, suas conquistas e coisas desinteressantes sobre o seu emprego numa indústria de ferro na qual trabalhava há alguns anos. Muitas vezes seu aparelho celular chamava e o jogo parava para ele atender, o que significava alguns minutos de pausa para ele conversar com um amigo e para os namoradinhos ao lado aconchegarem-se e trocarem namoricos.
Era também o intervalo para Dio poder fingir por uns momentos que não havia mais ninguém na sala e então ficar absolutamente calado.
Em certo momento, a mãe dos garotos apareceu e sentou-se ao lado de Dio e começou a falar com ele sobre as coisas mais desinteressantes que uma dona-de-casa de meia idade poderia falar. Ela, como a maioria das mães dos amigos do rapaz, gostava dele, pois confundia sua calma e silêncio com receptividade e, por isso, desatava a narrar a infância dos filhos – destacando suas insolências -, os contratempos do trabalho doméstico, fofocas da vizinhança e etc.... Enfim, assuntos que não tinham graça no começo, nem no meio, tampouco no desfecho.
O mesmo acontecia com o Sr. Soberbo, pai dos garotos, embora seus assuntos fossem mais voltados para queixas aos políticos, à moralidade do povo e aos negócios estagnados da cidade. Por sorte, naquele dia, o homem não estava em casa e Dio poderia então economizar nos murmúrios e meneios de fingida concordância que já estava gastando com o resto da família.
É claro que Dio poderia ter convidado o amigo para ir até sua casa, onde apenas ele morava, mas isto significaria dar mais atenção a ele do que ali, onde o próprio saberia onde as coisas ficavam ou comeria e se moveria como e quando quisesse, sem ter de pedir permissão ou tentar ser educado. Outro motivo para não convidar os outros para sua casa era que lá não havia muitas coisas que duas ou mais pessoas poderiam fazer para se distrair juntas além de assistir TV; o lazer de Dio em sua casa era sua estante de livros e o computador, com o qual poderia se conectar com pessoas mais parecidas com ele, de outras partes do mundo e de outras classes sociais.
Ausentada a mãe e desligado o celular, encerram-se os namoricos e continua-se o jogo. Soberbo estava começando a virar o jogo, talvez por ter começado a concentrar-se mais e a falar menos, até que...
- Sabe, Dio. Acho que o que te falta é uma namorada – soltou ele, após finalizar sua jogada.
Dessa vez, não houve nenhum “uhum” e nenhum aceno de cabeça; não houve nenhuma fingida concordância nem nenhum outro sinal externo de resposta, pois Dio olhava vagamente para o baralho em sua mão, como se pensasse no jogo, enquanto que, por dentro, tudo se remexia.
“Eu não acredito que ele tocou nesse assunto. Por que ele resolveu falar sobre mim? Desde quando ele reflete sobre a minha vida? Desde quando ele, sequer, me percebe?”, sua mente desatava a questionar. E continuava: “O que eu respondo pra este imbecil agora? Que droga, por que ele não continuou só falando sobre as besteiras de sempre? Certamente eu vou ter que responder algo, desta vez.”
- Você sabe que eu não saio muito – respondeu para o outro.
- Exatamente! Quando você tiver uma garota, vai querer fazer coisas diferentes com ela e vai acabar tendo uma vida social mais ativa. Vou te apresentar uma prima minha. Ela gosta de nerds.
Dio corou, talvez por embaraço, ou também por raiva. Não conseguia mais pensar direito, só escutar o que entrava pelos seus ouvidos. Soberbo havia abalado sua paz interior de uma hora para outra, e o que Dio mais detestava era que a voz dentro dele ficasse sem palavras.
- O que me diz? – continuou Soberbo.
Finalmente, Dio reencontrou a voz. “Essa não! Ele está tentando solucionar meus problemas, e além disso, está me pressionando! Mas  que droga, não é para isso que eu ando com esse cara!”
- Diga à sua prima que eu não sou um nerd. Sou apenas inteligente. E diga também que eu ando muito ocupado com minhas aulas de ciências e meus estudos noturnos de contabilidade.
Foi a desculpa mais apropriada que ele conseguiu encontrar.
- “Estudos noturnos”? “Contabilidade”? – Soberbo riu – Isso é ser nerd! E você não pode estar tão ocupado assim, afinal, você não está trabalhando.
Silencio, dentro e fora.
Pôde-se ouvir uma avalanche do outro lado da cidade. Ninguém se sobressaltou, então Dio percebeu que na verdade era seu escudo de “sonsice” e sua máscara de apatia que desabavam morro abaixo.
- E desde quando você se preocupa com minha vida social, Soberbo? – sua voz soou tão estranha para ele quanto a situação.
- Ora, você é meu amigo e por isso estou preocupado com o quanto você anda... “sufocado” consigo mesmo.  Até há alguns meses eu não conseguia ganhar sequer uma partida de jogos de cartas de você, agora você anda tão distraído, que eu sempre ganho. Você anda diferente, e para pior.
Então Dio olha para a mesa. Nas anotações, a numeração de pontos; Soberbo à frente com metade. Seu coração dispara.
“Isso não pode estar acontecendo”, pensava. “Esse tipo de conversa é o que eu tento evitar andando com esse cara. E agora ele vem me falar dos meus relacionamentos, do meu desemprego e, ainda, me dizer que estou ficando mais burro que ele??”
[...]
Ao final da tarde, Dio preparava-se para despedir-se e voltar para casa quando eis que a campainha soa e a namorada de Soberbo é recebida na casa.
Sim, o garanhão tinha uma namorada. Mais que isso: quase uma noiva!
Era uma menina bonita e suave, que tingia o ar com o perfume de seus cabelos. Pena ser tão tola em entregar-se a um rapaz mau caráter e sem respeito pelas coisas nobres da vida, como o amor.
De certa forma, ela – que se chamava Cecília -, merecia a promiscuidade de seu namorado, pois, da mesma forma que para ele o compromisso de um noivado era um palco para desfilar uma faceta diferente de sua personalidade, para ela era uma vaidade possuir uma namorado tão popular e dono de si. Em síntese, ambos gostavam mais da situação do que, propriamente, um do outro.

[continua...]

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