Johanes era um rapaz magro e
alto, com braços e pernas e mãos e pés longos e largos, que esbarravam em tudo
e em todos. Era extremamente desajeitado. Passava pelos lugares esbarrando em
móveis e pessoas, derrubando objetos e batendo a cabeça. Mas isso não era
inteiramente culpa sua - membros maiores são mais difíceis de administrar.
E, embora fosse dono de uma
natureza plácida, passava pela vida do mesmo modo que andava pelo mundo: aos
tropeços, quebrando e machucando (a si mesmo), como um furacão ensandecido
incapaz de controlar-se e sem saber para onde seguir.
Mas são assim os sentimentos;
você precisa pôr-lhes arreios e domá-los para que, mesmo não podendo
eliminá-los, eles não o dominem.
Infelizmente, ninguém
ensinou-lhe a pôr arreios e domar cavalos, muito menos sentimentos, e é por
isso que por esta vida o rapaz seguia, engolfado por uma tempestade em alto mar
de emoções.
Naquela noite de inverno,
Johanes, ou melhor, Dio - como era mais chamado -, estava sentado em sua cama,
com o rosto enfiado num travesseiro, preso num labirinto de reflexões, enquanto
ouvia o barulho da chuva caindo lá fora.
- Um dia eu não vou suportar
mais tudo isso - murmurou - e vou acabar dando um fim nesta vida.
Evidentemente, ele estava
aflito e costumeiramente o motivo por essa aflição era banal. Comumente punha a
culpa em si mesmo por seja lá o que o fez ficar aflito e tipicamente resolvia o
caso pondo a solução no suicídio; um requisitado suicídio que estava agora tão
longe de ser concretizado quanto sempre esteve. Felizmente ou não, Dio não era
ainda o tipo de pessoa que poria fim à própria vida.
Ali, no meio de seu quarto
pequeno, todo decorado de azul escuro, como no fundo do mar ou numa noite
escura - ambos lugares onde um tímido se sentiria protegido -, ele começava a
tentar entender o que houvera feito de errado para sentir-se triste agora.
Naquela mesma tarde, ele havia
saído de casa para visitar seu mais frequente amigo, John Soberbo. Um nome
extravagante, mas não tanto quanto seu dono, de tal forma que chamavam-no pelo
último nome como se não houvesse nenhum outro pelo qual chamar, tamanha a
identidade que um conferia ao outro. Tratava-se de um sujeito asqueroso, metido
com todo mundo e envolvido em todo tipo de negócios, sempre buscando uma forma
de ser notado. Assim, aplicava todas as energias de suas 19 horas de vigília
diária tocando guitarra, apresentando pequenos shows pela cidade, fazendo cinco
cursos durante a semana – graduações, técnicos, profissionalizantes,
curiosidades e mexericos -, além de praticar exercícios diariamente numa
academia da cidade.
Era um rapaz baixo (o que
contrastava com seu ego superdesenvolvido) mas forte. Cabelos muito escuros e
sobrancelhas grossas e unidas, um sinal de pessoa irritável e sem sossego, como
alguns estudiosos poderiam confirmar. Era um pouco mais velho que Dio, que
tinha por volta de 20 anos.
            Durante
a visita, os dois jogaram cartas, jogos de tabuleiro, assistiram TV e muitas
coisas que se fazem em finais de semana chuvosos como aquele. Também
conversaram sobre todo tipo de coisas sem importância, como notícias de vacas
clonadas que passavam ocasionalmente na TV.
            A
verdade é que apenas Soberbo conversava, enquanto Dio só escutava. Normalmente
era assim. O primeiro podia passar horas a fio falando e falando e tentando
fazer-se rir, enquanto o segundo ficava quieto, fingindo expressões de espanto
ou risos esporadicamente.
            Ora,
por que Soberbo gostava de Dio? Bem, não gostava. Mas Dio era muito
inteligente, é preciso dizer, e Soberbo gostava de colecionar amigos assim, que
se destacassem da maioria de alguma forma, seja pela virtude ou pela falta
dela. E os exibia como se fossem contas de um colar.
            Ora,
e por que Dio gostava de Soberbo? Bem, também não gostava, esta que é a
verdade. Mas Dio era dono de uma mente aguda, capaz de bolar estratégias
estupendas, como esta, de fingir ser amigo de alguém tão extravagante que
pudesse desviar a atenção dos outros só para si. Assim, Dio poderia
confundir-se facilmente com a mobília quando da presença do outro, e então
ninguém o perceberia.
            As
pessoas tímidas costumam mesmo despender muita energia em métodos e estratégias
para se verem livres de atenção alheia. Sentem-se tão ridículas e desengonçadas
que detestam quando alguém lhes dirige um olhar ou puxam um papo, como se
estivessem pensando em sua mediocridade por trás das palavras.
            Além
do mais, não tendo muitos amigos, o único que poderia distraí-lo em dias como
aquele era Soberbo.
            Então,
ali estavam. Dio com uma sequência de copas na mão, enquanto seu “amigo” estava
do outro lado da mesa, com as mãos mais cheias de cartas do que um carteiro,
vesgueando os olhos por elas, tentando entender o que significavam.
            -
Lembra aquela Cristine que fazia aula de Direito conosco? – dizia o bobalhão de
mãos cheias – Ela não para de me ligar. Está louca pra ter outra chave comigo.
Esse tipo me cansa.
            -
Uhum – Dio balançou a cabeça em concordância – Você não esqueceu que é sua vez
de jogar, né?
            -
Não, não. Eu já vou.
            Algum
tempo depois, naquela única partida, Dio alcançou a pontuação limite e ganhou o
jogo. Deram-se as cartas novamente e começaram um novo jogo. Soberbo continuou
falando.
            -
Sabe uma loirinha que mora aqui do lado?
            -
Sei.
            -
Ela namora.
            -
Sei.
            -
Mas tá caidinha por mim.
            -
Nossa...
            -
Imagina só, ontem ela veio até mim quando eu passava pelo portão de casa e você
não acreditaria na conversa que me passou.
            -
Nem posso imaginar. Sua vez de jogar.
            -
Primeiro ela veio com um papo de...
            Nesse
momento, alguém entrou pela porta. Era o irmão caçula de Soberbo, um verdadeiro
Frankstein; mais alto que Dio, mais forte que o irmão mais velho, mas com um
rosto de criança, como se corpo e cabeça não houvessem nascido juntos e sim
posteriormente unidos.
- Oi – disse ele.
Seu nome era Caio. Era tão
bobo quanto o irmão, mas não tão arrogante. Trazia a namoradinha aninhada entre
o braço e a axila esquerda. A coitada nem falava.
- Podemos jogar também?
- Claro! – disse Dio. O
importante era que o tempo passasse, pensava ele.
Enquanto jogavam, Soberbo
continuava contando suas desventuras amorosas, suas conquistas e coisas
desinteressantes sobre o seu emprego numa indústria de ferro na qual trabalhava
há alguns anos. Muitas vezes seu aparelho celular chamava e o jogo parava para
ele atender, o que significava alguns minutos de pausa para ele conversar com
um amigo e para os namoradinhos ao lado aconchegarem-se e trocarem namoricos.
Era também o intervalo para
Dio poder fingir por uns momentos que não havia mais ninguém na sala e então
ficar absolutamente calado.
Em certo momento, a mãe dos
garotos apareceu e sentou-se ao lado de Dio e começou a falar com ele sobre as
coisas mais desinteressantes que uma dona-de-casa de meia idade poderia falar.
Ela, como a maioria das mães dos amigos do rapaz, gostava dele, pois confundia
sua calma e silêncio com receptividade e, por isso, desatava a narrar a
infância dos filhos – destacando suas insolências -, os contratempos do
trabalho doméstico, fofocas da vizinhança e etc.... Enfim, assuntos que não
tinham graça no começo, nem no meio, tampouco no desfecho.
O mesmo acontecia com o Sr.
Soberbo, pai dos garotos, embora seus assuntos fossem mais voltados para
queixas aos políticos, à moralidade do povo e aos negócios estagnados da
cidade. Por sorte, naquele dia, o homem não estava em casa e Dio poderia então
economizar nos murmúrios e meneios de fingida concordância que já estava
gastando com o resto da família.
É claro que Dio poderia ter
convidado o amigo para ir até sua casa, onde apenas ele morava, mas isto
significaria dar mais atenção a ele do que ali, onde o próprio saberia onde as
coisas ficavam ou comeria e se moveria como e quando quisesse, sem ter de pedir
permissão ou tentar ser educado. Outro motivo para não convidar os outros para
sua casa era que lá não havia muitas coisas que duas ou mais pessoas poderiam
fazer para se distrair juntas além de assistir TV; o lazer de Dio em sua casa
era sua estante de livros e o computador, com o qual poderia se conectar com
pessoas mais parecidas com ele, de outras partes do mundo e de outras classes
sociais.
Ausentada a mãe e desligado o
celular, encerram-se os namoricos e continua-se o jogo. Soberbo estava
começando a virar o jogo, talvez por ter começado a concentrar-se mais e a
falar menos, até que...
- Sabe, Dio. Acho que o que te
falta é uma namorada – soltou ele, após finalizar sua jogada.
Dessa vez, não houve nenhum
“uhum” e nenhum aceno de cabeça; não houve nenhuma fingida concordância nem
nenhum outro sinal externo de resposta, pois Dio olhava vagamente para o
baralho em sua mão, como se pensasse no jogo, enquanto que, por dentro, tudo se
remexia.
“Eu não acredito que ele tocou
nesse assunto. Por que ele resolveu falar sobre mim? Desde quando ele reflete
sobre a minha vida? Desde quando ele, sequer, me percebe?”, sua mente desatava
a questionar. E continuava: “O que eu respondo pra este imbecil agora? Que
droga, por que ele não continuou só falando sobre as besteiras de sempre?
Certamente eu vou ter que responder algo, desta vez.”
- Você sabe que eu não saio
muito – respondeu para o outro.
- Exatamente! Quando você
tiver uma garota, vai querer fazer coisas diferentes com ela e vai acabar tendo
uma vida social mais ativa. Vou te apresentar uma prima minha. Ela gosta de nerds.
Dio corou, talvez por
embaraço, ou também por raiva. Não conseguia mais pensar direito, só escutar o
que entrava pelos seus ouvidos. Soberbo havia abalado sua paz interior de uma
hora para outra, e o que Dio mais detestava era que a voz dentro dele ficasse
sem palavras.
- O que me diz? – continuou
Soberbo.
Finalmente, Dio reencontrou a
voz. “Essa não! Ele está tentando solucionar meus problemas, e além disso, está
me pressionando! Mas  que droga, não é
para isso que eu ando com esse cara!”
- Diga à sua prima que eu não
sou um nerd. Sou apenas inteligente.
E diga também que eu ando muito ocupado com minhas aulas de ciências e meus
estudos noturnos de contabilidade.
Foi a desculpa mais apropriada
que ele conseguiu encontrar.
- “Estudos noturnos”? “Contabilidade”?
– Soberbo riu – Isso é ser nerd! E
você não pode estar tão ocupado assim, afinal, você não está trabalhando.
Silencio, dentro e fora.
Pôde-se ouvir uma avalanche do
outro lado da cidade. Ninguém se sobressaltou, então Dio percebeu que na
verdade era seu escudo de “sonsice” e sua máscara de apatia que desabavam morro
abaixo.
- E desde quando você se
preocupa com minha vida social, Soberbo? – sua voz soou tão estranha para ele
quanto a situação.
- Ora, você é meu amigo e por
isso estou preocupado com o quanto você anda... “sufocado” consigo mesmo.  Até há alguns meses eu não conseguia ganhar
sequer uma partida de jogos de cartas de você, agora você anda tão distraído,
que eu sempre ganho. Você anda diferente, e para pior.
Então Dio olha para a mesa.
Nas anotações, a numeração de pontos; Soberbo à frente com metade. Seu coração
dispara.
“Isso não pode estar
acontecendo”, pensava. “Esse tipo de conversa é o que eu tento evitar andando
com esse cara. E agora ele vem me falar dos meus relacionamentos, do meu
desemprego e, ainda, me dizer que estou ficando mais burro que ele??”
[...]
Ao final da tarde, Dio
preparava-se para despedir-se e voltar para casa quando eis que a campainha soa
e a namorada de Soberbo é recebida na casa.
Sim, o garanhão tinha uma
namorada. Mais que isso: quase uma noiva!
Era uma menina bonita e suave,
que tingia o ar com o perfume de seus cabelos. Pena ser tão tola em entregar-se
a um rapaz mau caráter e sem respeito pelas coisas nobres da vida, como o amor.
De certa forma, ela – que se
chamava Cecília -, merecia a promiscuidade de seu namorado, pois, da mesma
forma que para ele o compromisso de um noivado era um palco para desfilar uma
faceta diferente de sua personalidade, para ela era uma vaidade possuir uma
namorado tão popular e dono de si. Em síntese, ambos gostavam mais da situação
do que, propriamente, um do outro.
[continua...]
[continua...]
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário